Acaba de chegar à plataforma de streaming HBO Max o filme Mountainhead, uma sátira dramática escrita e dirigida por Jesse Armstrong, criador da aclamada série Succession. Ambientada em meio a uma crise internacional provocada pela proliferação de desinformação via inteligência artificial, a trama acompanha quatro magnatas da tecnologia reunidos em um retiro de luxo isolado enquanto o mundo arde — literalmente — do lado de fora.
A proposta do longa é expor, com humor ácido e crítica mordaz, a arrogância, a megalomania e o cinismo de uma elite tecnológica que acumula poder desmedido. Embora os personagens sejam fictícios, seus traços e discursos remetem diretamente a figuras reais que moldam os rumos da era digital.
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Entre os protagonistas está Venis “Ven” Parish (Cory Michael Smith), dono da Traam, uma rede social responsável por disseminar deepfakes tão convincentes que provocam colapsos institucionais mundo afora. Ele tenta adquirir a IA criada por Jeff Abredazi (Ramy Youssef), fundador da Bilter, capaz de identificar conteúdos falsos — mas relutante em entregar seu invento ao colega.
Completam o grupo Randall Garrett (Steve Carell), um veterano do capital de risco enfrentando um câncer terminal e obcecado pela imortalidade digital, e Hugo “Souper” Van Yalk (Jason Schwartzman), criador de um aplicativo de meditação frustrado por ser "apenas" multimilionário.
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Esse quarteto de homens hiper-poderosos, desconectados da realidade e indiferentes à humanidade, representa uma caricatura coletiva de nomes como Elon Musk, Peter Thiel, Mark Zuckerberg e Sam Altman.
Musk, CEO da Tesla, SpaceX e do X, inspira o personagem Venis com sua visão transumanista — que aposta na fusão entre mente e máquina para superar os limites humanos —, sua defesa da “liberdade de expressão” e seu apoio ao aceleracionismo tecnológico a qualquer custo.
Já Peter Thiel, cofundador do PayPal e investidor em tecnologias de vigilância e longevidade, fornece a base para o perfil de Randall: um bilionário com ares filosóficos, cético em relação à democracia e adepto de soluções tecnológicas radicais.
Zuckerberg, CEO da Meta — dona do Facebook, Instagram e WhatsApp — entra em cena como referência à crítica ao domínio absoluto sobre o fluxo de informações: em Mountainhead, os protagonistas controlam narrativas globais por meio de plataformas que moldam — ou distorcem — a realidade.
Sam Altman, CEO da OpenAI, que criou o ChatGPT, por sua vez, é evocado na figura de Jeff, que encarna a tensão entre ética e lucro: apesar de desenvolver uma IA voltada ao bem coletivo, também vislumbra ganhos bilionários com sua criação.
O carisma nerd, o discurso altruísta e o colapso ético ecoam nos personagens de Mountainhead, que oscilam entre visionários e farsantes — quase sempre perigosos.
Armstrong não pretende retratar esses nomes diretamente. O que ele constrói é um arquétipo: um grupo de tecnocratas narcisistas, deslumbrados com seu próprio brilhantismo, que flertam com ideias messiânicas e brincam com o destino do mundo como se estivessem em uma rodada de brainstorming.
Mais do que uma paródia, Mountainhead é um sinal de alerta. Em tempos em que bilionários da tecnologia acumulam poder geopolítico sem prestar contas a ninguém, o filme lembra que o verdadeiro risco não está na inteligência das máquinas — mas na arrogância de quem as comanda.
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A realidade já é distópica
Durante 1 hora e 52 minutos de exibição, Mountainhead se apresenta como uma sátira, mas revela, na verdade, um retrato sombrio do presente. A obra de Armstrong é vendida como ficção, mas soa como uma biografia coletiva de uma elite tecnológica desconectada da realidade e indiferente ao colapso em curso. O caos que o roteiro apresenta como distopia já está instalado — e normalizado — no mundo real.
Há poucas semanas, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, foi alvo de ataques por parte da mídia comercial e da oposição bolsonarista após mencionar, durante uma reunião com o presidente chinês Xi Jinping em Pequim, o caso da menina Sarah Raíssa Pereira de Castro.
Com apenas 8 anos, Sarah morreu no Distrito Federal depois de participar do chamado “desafio do desodorante” — uma prática disseminada em plataformas como TikTok e Kwai, que consiste em inalar aerossóis até a perda de consciência. Trata-se de uma espécie de roleta-russa digital, impulsionada por algoritmos de engajamento que normalizam comportamentos perigosos e letais entre crianças e adolescentes.
Esse episódio trágico é mais do que uma fatalidade: escancara a urgência do debate sobre a regulação das redes sociais no Brasil. Em 2025, esse debate se intensificou, impulsionado por casos como o de Sarah, pela disseminação de desinformação e pela multiplicação de crimes digitais.
A fragilidade do Sul Global
Uma das tramas secundárias de Mountainhead envolve a Argentina, usada como exemplo das consequências geopolíticas da desinformação impulsionada por inteligência artificial. No filme, uma deepfake (técnica de IA que permite criar ou alterar conteúdos visuais e sonoros de forma extremamente realista, simulando rostos, vozes ou movimentos de pessoas) altamente convincente — divulgada pela plataforma fictícia Traam — simula uma declaração de guerra feita pelo presidente argentino contra o Chile, provocando pânico, colapso cambial e instabilidade institucional.
Mesmo após o desmentido oficial, os danos já estavam consolidados, escancarando a vulnerabilidade de países do Sul Global diante do poder das big techs e seus algoritmos. A narrativa expõe o desprezo da elite tecnológica pelos destinos de nações periféricas, tratadas como “efeitos colaterais” de suas inovações. A Argentina, nesse contexto, não é apenas um enredo dramático: é o retrato ficcionalizado — e plausível — da fragilidade das democracias diante de tecnologias sem controle público.
Entre ficção e realidade
No mundo real, a crescente atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) contra conteúdos ilegais nas redes sociais provocou tensões diplomáticas com os Estados Unidos. Sob o governo de Donald Trump, Washington avalia impor sanções a autoridades estrangeiras, com base na Lei Magnitsky, por supostas violações à liberdade de expressão — medida interpretada como recado direto ao ministro Alexandre de Moraes.
Big techs como a Rumble e a Trump Media acionaram a Justiça dos EUA contra Moraes, alegando "censura extraterritorial", enquanto o Departamento de Justiça afirmou que decisões do STF não têm validade automática no país. O Itamaraty vê essas ações como parte de um lobby internacional para impedir a regulação digital no Brasil.
Em resposta, o STF retomou o julgamento sobre o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que pode ampliar a responsabilidade das plataformas por conteúdos de terceiros. A medida é considerada estratégica para fortalecer a soberania nacional frente ao poder das big techs.
Essa crise, intensificada pela atuação do deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), ecoa o enredo distópico de Mountainhead. No filme, os cavaleiros do apocalipse da tecnologia se isolam em um retiro enquanto o mundo mergulha no caos provocado pela desinformação. A inércia — ou conveniência — desses magnatas diante do colapso social questiona até que ponto a elite tecnológica está disposta a agir em favor do bem comum.
Na vida real, a resistência das big techs à regulação brasileira se alinha à crítica central do filme: empresas privadas com poder global moldam o discurso público, lucram com o caos e operam acima das leis nacionais. Se Mountainhead aponta os riscos de um futuro controlado por algoritmos sem ética, os embates entre STF, governo Lula e os Estados Unidos mostram que esse futuro já começou — e está sendo escrito em tempo real.