Em 1968, "Panis et Circenses" (Pão e circo, em português), composição lendária de Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi lançada em dois álbuns coletivos importantes: Tropicália ou Panis et Circenses, pela Polygram/Phillips, e Os Mutantes, pela Polydor. A canção é interpretada pelo grupo, composto por Rita Lee, Arnaldo Dias Baptista e Sérgio Dias Baptista, e expressa uma fricção constante entre a permanente sensação de fracasso e o desejo de transformação social, essência do impulso tropicalista, que ainda sustenta nosso sentido de resistência e brasilidade cinco décadas depois.
Por trás da canção, é evocado o conceito de "pão e circo", recurso usado pelo Império Romano para manter a ordem social, que garantia alimentos e espetáculos enquanto ocultava os reais interesses do poder, em crítica à década de 60, uma época marcada pela ditadura militar, o crescimento da classe média urbana e a alienação social diante da repressão no Brasil. Um hino, "Panis Et Circenses" é a faixa que dá nome ao disco símbolo do Tropicalismo, movimento musical que surgiu em 1967 e transformou a cultura brasileira.
Na letra, há uma ironia evidente ao descrever a vida das "pessoas da sala de jantar", símbolo da burguesia brasileira acomodada, que segue alienada até os dias atuais, como figuras que se satisfazem com pequenas vaidades, preocupações banais e rotinas mecânicas. Presas a desejos superficiais e sonhos fúteis, estão alheias às transformações sociais e políticas em curso. Confira na letra:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos, sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões, nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
De puro aço, luminoso um punhal
Para matar o meu amor, e matei
Às cinco horas na Avenida Central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Contracultura e transgressão
"Panis Et Circenses" abre com um ruído familiar: a vinheta do Repórter Esso, o jornal radiofônico que anunciava verdades absolutas ao estilo americano, questionando a influência que o rádio e a televisão exerciam sobre a população. Aos poucos, um cenário se desenha em ritmo de valsa, onde a doce voz de Ria Lee canta seus desejos, sonhos e pequenos delitos. Mas tudo isso ecoa em vão: as “pessoas da sala de jantar” permanecem presas à própria bolha de conforto. A música cresce, repete seu refrão com insistência e acelera, até que um estalo — o som de talheres caindo — quebra o encanto.
No fundo, enquanto conversas vazias preenchem o ar, uma valsa suave embala mais um jantar burguês, onde o único desejo verdadeiro é por “mais um pedaço de pão”. Desmontar as estruturas existentes, criar um certo caos para poder construir um novo movimento era o objetivo para um país explorado, sob um regime que ditava comportamentos e favorecia elites em face da miséria.
Para os artistas, essa confusão na música representava a constatação de que havia uma desordem na música e na sociedade do Brasil. Assim como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a MPB, a Tropicália foi um dos movimentos culturais que marcaram profundamente a identidade e história da música brasileira.