• ANÁLISE

    Conselhos de Cultura: da crítica à construção de participação social – Por Daniel Samam

    Os conselhos são instrumentos, pontes, ferramentas para edificarmos uma política cultural mais justa, mais diversa, mais potente e mais representativa

    Imagem Ilustrativa.Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil
    Por
    Escrito en DEBATES el

    O cenário cultural brasileiro encontra-se, por vezes, diante de um espelho que reflete não apenas sua beleza, mas também seus desafios. Em artigo intitulado "O fim dos Conselhos de Cultura e a restauração das guildas", publicado recentemente, o professor Humberto Cunha Filho alerta para um dilema crucial nos conselhos de cultura. Estes espaços, que nasceram com a promessa de democratizar as decisões e a gestão cultural, estariam correndo o risco de se assemelhar às antigas “guildas medievais”. Estas corporações, como nos lembra o professor, foram historicamente postas de lado justamente por se fecharem em interesses segmentados, distanciando-se da promoção do bem comum. A provocação, embora incômoda, é um convite urgente à reflexão: estaríamos, sob o manto da participação social, caminhando para trás, limitando a profundidade e o alcance de nossas políticas culturais?

    Este questionamento ecoa em um momento particularmente sensível, em que o Sistema Nacional de Cultura (SNC) busca consolidar seus alicerces e o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) se debruça sobre sua própria reestruturação. É fundamental frisar: a crítica de Cunha Filho não é, de forma alguma, um ataque à participação social. Pelo contrário, a participação é a alma de qualquer democracia que se preze, um pilar sagrado da nossa Constituição de 1988. O que se propõe é um olhar mais atento e corajoso sobre como essa participação tem se configurado e qual o seu verdadeiro poder de transformação.

    O nó górdio da questão, apontado com precisão por Cunha Filho, parece residir na forma como a representação tem se manifestado em muitos desses conselhos. A impressão, por vezes, é que a energia se concentra mais em "renitentes reivindicações de poderes e recursos para segmentos culturais" do que em uma "análise conjuntural ou mesmo estrutural" dos complexos desafios e das imensas potencialidades do nosso campo cultural. Quando a voz da representação se limita à defesa intransigente de interesses particulares, por mais legítimos que sejam, perde-se a chance preciosa de tecer políticas culturais que abracem a todos, que incluam, que inspirem e que verdadeiramente transformem. Como bem sublinha o autor, "a principal fonte de autoridade de um conselho de cultura não é jurídica (...), mas de ideias".

    E aqui reside uma verdade. A legitimidade de um conselho não brota automaticamente de sua composição paritária ou de sua existência no papel. Ela é semeada e cultivada na capacidade de seus membros – sejam eles vozes da sociedade civil ou representantes do poder público – de olharem para além de suas trincheiras imediatas. É na habilidade de contribuir com diagnósticos afiados, propostas que respirem inovação e uma visão de futuro para a cultura brasileira que essa legitimidade floresce. Sem essa capacidade de formular, de dialogar com profundidade, corremos o risco, como nos adverte a antiga sabedoria de Shakespeare, trazida por Cunha Filho, de permitir que "um louco se transforme no guia de um cego".

    Se a força motriz dos conselhos reside, de fato, no poder das ideias, então a qualificação daqueles que ocupam essas cadeiras emerge como uma prioridade que não pode mais esperar. As reflexões que acompanham o pensamento de Cunha Filho acendem uma luz sobre a necessidade premente de um "Programa de Formação de Gestores e Conselheiros" robusto e capilarizado no âmbito do SNC. E esta não é uma questão trivial. A gestão cultural é uma arte e uma ciência, que exige desde o conhecimento técnico sobre fomento e legislação até a sensibilidade para com a diversidade das expressões, ando pela compreensão da economia da cultura e pela defesa intransigente dos direitos culturais. Investir na formação contínua de conselheiros e gestores é, em essência, investir na própria vitalidade e eficácia do SNC e do CNPC, garantindo que os debates sejam mais férteis, as decisões mais bem fundamentadas e as políticas, consequentemente, mais impactantes.

    Nesse contexto, a discussão sobre a sociedade civil organizada como um potencial "ente federativo" ganha contornos fascinantes. É claro que, no rigor da lei, nossa Constituição define com clareza quem são os entes formais da federação: União, Estados, Municípios e o Distrito Federal. Mas a ideia de um "quarto ente", de natureza simbólica e política, é extremamente potente. Pensadores como Gramsci e Habermas já nos ensinaram sobre o papel crucial da sociedade civil – com sua miríade de organizações e sua vibrante esfera pública de debate – na construção de consensos, na capacidade de influenciar o Estado e na própria legitimação das decisões políticas. No Brasil, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei nº 13.019/2014) é um reconhecimento formal dessa parceria vital entre o Estado e as OSCs. Os conselhos, as conferências, as audiências públicas são a materialização dessa cogovernança.

    Assumir essa perspectiva é vital para pensarmos a reestruturação do CNPC e o fortalecimento contínuo do SNC. Significa enxergar a sociedade civil não como um mero agrupamento de demandantes, mas como uma força criativa, com imensa capacidade de formulação, de fiscalização cidadã e de mobilização social. É o caminho para construirmos políticas culturais que sejam, de fato e de direito, democráticas e participativas.

    O alerta do professor Humberto Cunha Filho sobre o risco dos conselhos de cultura se transformarem em guildas medievais não deve nos paralisar, mas sim nos impulsionar à ação. Para que esses espaços cumpram o papel transformador que deles se espera é preciso ir além da simples representação de nichos. O caminho para essa evolução a, inevitavelmente, por um investimento sério e contínuo na formação de quem ocupa esses espaços, capacitando-os não apenas com ferramentas de gestão, mas com uma visão crítica e estratégica.

    Além disso, é fundamental que os conselhos se percebam e atuem também como usinas de ideias, como centros de produção de conhecimento sobre nossa rica e diversa realidade cultural, gerando diagnósticos que sirvam de base para políticas mais assertivas. Essa efervescência intelectual só pode florescer em um ambiente onde o debate qualificado seja a norma, onde a escuta atenta e a busca por consensos – que não anulem as salutares divergências – sejam cultivadas. Essa cultura de diálogo precisa se estender à forma como os diferentes níveis do SNC se articulam, tecendo uma rede colaborativa e coesa. E, finalmente, nada disso se sustenta sem uma dedicação incansável à transparência e a uma comunicação aberta com toda a sociedade, prestando contas e convidando cada cidadão a ser parte dessa construção coletiva.

    Os conselhos de cultura, afinal, não são um fim em si mesmos. São instrumentos, pontes, ferramentas para edificarmos uma política cultural mais justa, mais diversa, mais potente e mais representativa dos anseios do povo brasileiro. Ao encararmos de frente as críticas, ao abraçarmos os desafios com coragem e ao investirmos na qualificação da participação e na valorização das ideias, poderemos, sim, transformar esses espaços em verdadeiros motores de desenvolvimento cultural para o Brasil. E a sociedade civil, essa força política e social que pulsa em cada canto do país, tem um papel insubstituível nesta jornada – não como um mero apêndice do Estado, mas como sua parceira crítica, criativa e propositiva na construção do futuro que sonhamos e merecemos.

    Referências

    CUNHA FILHO, Humberto. "O fim dos Conselhos de Cultura e a restauração das guildas". (O fim dos Conselhos de Cultura e a restauração das guildas).

    BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

    BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil).

    BRASIL. Lei nº 14.835, de 4 de abril de 2024 (Marco Regulatório do Sistema Nacional de Cultura).

    *Daniel “Samam” Barbosa Balabram é músico, educador e está no Ministério da Cultura (MinC) como coordenador-geral do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC e coordenou a 4ª Conferência Nacional de Cultura - 4ª CNC.

    **Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

    Reporte Error
    Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar
    Carregar mais