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    'Irmão de Jesus Cristo': o líder que acreditava ser filho de Deus e comandou uma revolução sangrenta

    Hong Xiuquan fundou a Rebelião dos Taiping, um movimento religioso e social que abalou profundamente a dinastia Qing e marcou a transição da China para a modernidade

    Créditos: Fotomontagem (Baidou)
    Escrito en HISTÓRIA el

    Hong Xiuquan (1814–1864) teve um sonho que mudou sua vida e o destino da China. Nascido em uma família humilde na província de Guangdong, no sul do país, Hong (1814–1864) tentou diversas vezes, sem sucesso, ar nos exames imperiais para obter um cargo público durante a dinastia Qing (1644–1912). 

    Após seu terceiro fracasso, entrou em um estado de exaustão mental e doença. Foi então que sonhou que ascendia ao céu e encontrava um homem grandioso que se apresentava como seu “irmão mais novo” — identificado por ele como Jesus Cristo.

    Nesse delírio, Hong foi instruído a expulsar os demônios malignos da Terra, que ele interpretou como a dinastia Qing e as forças opressoras do povo chinês. Ao despertar, acreditou ter uma missão divina de liderar uma revolução religiosa e social, baseada em uma versão fundamentalista do cristianismo.

    Para cumprir essa visão, Hong liderou a Rebelião dos Taiping (1851–1864), um levante camponês de grande escala contra o domínio Qing e a crescente influência do capitalismo estrangeiro. Foi um dos mais sangrentos da história da humanidade em que se estima que o número total de mortes relacionadas ao conflito varie entre 20 a 30 milhões de pessoas, incluindo combatentes e civis.

    Essa dimensão de mortes é considerada uma das maiores catástrofes demográficas causadas por um conflito interno, superando muitas guerras convencionais em termos de impacto humano. A alta mortalidade deve-se não só aos combates diretos, mas também às consequências indiretas da guerra, como fome, doenças e deslocamentos forçados.

    Século das humilhações

    Naquele período, a China vivia o “século das humilhações”, após as Guerras do Ópio (1839–1842 e 1856–1860), que a opam principalmente à Grã-Bretanha. Esses conflitos resultaram em tratados desiguais que abriram o mercado chinês ao comércio estrangeiro e influenciaram profundamente sua história moderna.

    Para pagar a elevada indenização de guerra e o impacto financeiro da entrada maciça de ópio, o governo Qing aumentou os impostos em até três vezes, agravando a crise econômica. A importação massiva de produtos industriais estrangeiros destruiu o artesanato local, levando muitos agricultores e artesãos à falência, enquanto a classe latifundiária expandia a posse de terras e a exploração.

    Esse período marcou a transição da China para um sistema semi-colonial e semi-feudal, aprofundando contradições sociais e étnicas. Na década seguinte à Guerra do Ópio, mais de cem levantes camponeses ocorreram contra o regime Qing. 

    Na região de Guangxi, com diversos grupos étnicos, a opressão e exploração foram intensas, agravadas por desastres naturais. Essas tensões culminaram na eclosão da grande Rebelião dos Taiping, liderada por Hong Xiuquan, um dos maiores movimentos populares da história chinesa.

    Após um período inicial de conquistas, a rebelião entrou em declínio devido a conflitos internos entre a liderança religiosa e imperial, além da corrupção que corroeu sua base governamental. Embora incorporasse elementos das guerras camponesas tradicionais, buscava inspiração ocidental para promover reformas, combater o feudalismo e resistir à invasão estrangeira.

    A queda da capital do Reino Celestial dos Taiping, Tianjing — atual Nanjing — em 1864 marcou o fim da rebelião. Considerada o ápice das guerras camponesas na China, a revolta expôs as fragilidades do regime Qing e influenciou movimentos reformistas futuros.

    As bases da China moderna

    O historiador chinês Liu Danian (1927–2015) reconhece a Revolução Taiping como um evento crucial na transição da China tradicional para a modernidade. Ele é reconhecido por suas contribuições à compreensão da história moderna do país, especialmente sobre a transição do período imperial para a modernidade. 

    Liu destaca que a revolta apresentava características modernas, como a defesa da igualdade e propostas radicais de reforma social, embora tenha sido limitada pela falta de liderança política estruturada e pela forte influência religiosa, o que prejudicou seu sucesso militar e político.

    O impacto da rebelião foi profundo: acelerou o declínio do governo Qing, fragilizou a autoridade imperial e preparou o terreno para movimentos como a Revolução Xinhai de 1911, que derrubou o império. A rebelião expôs a insatisfação das camadas rurais com o sistema feudal, refletida nas propostas de reforma agrária e justiça social.

    Contudo, as contradições internas, especialmente o conflito entre a dimensão teocrática e as reformas políticas, dificultaram a consolidação do movimento. Para Liu Danian, a Revolução Taiping é essencial para compreender a complexa transição da China do sistema imperial para a modernidade, representando um momento violento e transformador.

    Elemento religioso

    Liu considera o cristianismo central na Revolução Taiping, mas não como uma mera importação ocidental, e sim uma releitura radical adaptada às condições sociais, políticas e culturais da China do século XIX. 

    Hong Xiuquan e seus seguidores criaram a “Sociedade do Deus Supremo”, uma doutrina que mesclava cristianismo com crenças tradicionais chinesas, formando uma teocracia singular.

    Esse cristianismo sincrético legitimou a luta contra o regime Qing e as estruturas feudais, adequando-se às demandas de justiça social, igualdade e reforma radical.

    Liu enfatiza que a natureza religiosa e messiânica da revolta trouxe limitações políticas, especialmente pela tensão entre liderança espiritual e governança secular, o que explica seu sucesso inicial e posterior queda.

    Cristianismo na China hoje: política oficial e desafios

    Há um livro branco do governo chinês, publicado em 2018, “Políticas e Práticas da China sobre a Proteção da Liberdade de Crença Religiosa”, que detalha as diretrizes do país para garantir a liberdade religiosa dentro do marco legal. O texto reafirma a convivência harmoniosa entre crentes e não crentes e a adaptação das religiões ao socialismo chinês.

    Como país socialista liderado pelo Partido Comunista da China (PCCh), o Estado protege a liberdade religiosa respeitando a independência e autogestão das religiões, proíbe interferências estrangeiras e combate o extremismo e atividades ilegais sob a capa da religião, assegurando que as práticas religiosas não comprometam a ordem pública, segurança nacional ou unidade étnica.

    A liberdade religiosa é garantida pela Constituição e por legislações que asseguram direitos iguais a todos os cidadãos. Regulamentos de 2017 aprimoraram a gestão religiosa, controlando a comercialização das religiões e a disseminação de discursos extremistas.

    A China abriga cerca de 200 milhões de crentes de religiões como budismo, taoismo, islamismo, catolicismo e protestantismo, que realizam suas práticas conforme as normas estatais. Cerca de 20 milhões de pessoas são cristãs, com a maioria sendo protestantes. A Igreja Católica também tem presença significativa, com cerca de 6 milhões de fiéis registrados. Há cerca de 144 mil locais de culto, com infraestrutura e serviços públicos garantidos pelo governo.

    As religiões tradicionais chinesas alinham-se às políticas estatais, promovendo valores socialistas, patriotismo e harmonia social. Comunidades religiosas participam ativamente de caridade, preservação ambiental e diálogo inter-religioso.

    O governo combate firmemente o extremismo e o terrorismo, incentivando discursos contra a violência e o separatismo. As relações entre Estado, grupos religiosos e sociedade são pautadas no respeito, diálogo e cooperação política, com líderes religiosos integrados a órgãos consultivos governamentais.

    Internacionalmente, organizações religiosas chinesas mantêm intercâmbio com entidades de mais de 80 países, participando de conferências multilaterais e promovendo uma religiosidade adaptada ao contexto chinês e aos valores socialistas.

    China e Vaticano

    A relação diplomática entre China e Vaticano tem avançado, embora com desafios. Em setembro de 2018, foi firmado um acordo provisório permitindo ao governo chinês propor candidatos a bispos, cabendo ao Papa a aprovação final. O pacto buscava superar divisões entre a Igreja Católica oficial, controlada pelo Estado, e a Igreja clandestina fiel a Roma.

    O acordo foi renovado em 2020 e novamente em outubro de 2024, por mais quatro anos. A Santa Sé reafirmou seu compromisso com o diálogo respeitoso para fortalecer a Igreja na China e o bem-estar do povo chinês.

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