Vestida de noiva – Por Lelê Teles
"Daqui a pouco ela apareceu na porta do hotel, de grinalda na cabeça, segurando a barra do vestido de noiva para não arrastar no chão. Entrou no carro e saímos em disparada"
meu irmão mais velho começou cedo na vida do crime.
aos nove anos de idade, sorrateiramente, ele entrou no quarto de um vizinho adolescente e surrupiou todas as economias do pequeno capitalista.
misso, esse era o nome da vítima, guardava as moedinhas que ganhava dos pais e dos tios dentro de um porquinho de barro que ele escondia debaixo da cama.
às vezes, ele trazia o cofrinho pra rua, fazendo inveja na meninada.
a gente se revezava, agitados, pra sentir o peso do porquinho, que sempre aumentava, e sacudir o bichinho pra ouvir o tilintar das moedinhas.
movido pela cobiça, meu irmão quebrou o animalzinho a marteladas, pegou toda a fortuna do pobre-diabo e foi até a mercearia do seo kelé.
comprou bolo, bolachas recheadas, chicletes, carrinhos, suspiros, marias-moles e um monte de guloseimas e distribuiu pra molecada.
risos, folguedos, corre-corre; algazarra.
nasceu ali, no pequeno corpo do meu irmão, o grande espírito de um robin hood.
por décadas, esse encosto serviu como justificativa para a sua cleptomania patológica.
mamãe acreditava que o filho nascera com uma maldição, já que veio ao mundo no dia primeiro de abril, o que faria dele, eternamente, um mentiroso contumaz.
o certo é que à medida que ele ia crescendo, crescia com ele uma incrível habilidade criminosa e uma irrefreável vontade de delinquir.
depois do porquinho, vieram outros pequenos crimes: furtos, falcatruas, trapaças, trambiques, desfalques, descuidos.
na pré-adolescência, migrou para o roubo de varais, furtos em supermercados, invasão de domicílios.
adolescendo, ou para o rufianismo e a agiotagem.
na fase adulta: roubos de casas, de lojas, de carros, assaltos à mão armada e tráfico de drogas.
confesso que o acompanhei em muitas dessas aventuras, e me diverti bastante criminando e delinquindo.
mas de tudo o que fizemos juntos ainda guardo viva a memória do dia em que roubamos uma mulher.
não que tenhamos roubado algo dela, roubamos ela mesma.
chamava-se divina e era divinamente linda.
lábios sempre úmidos, olhos miúdos e observadores, mãos suaves e ardilosas, um andar sinuoso e ensinuante e sorria sempre com entusiasmada galhardia.
desde cedo, queixava-se à minha mãe que queria se casar logo e se livrar de uma vez por todas da mãe opressora.
assim que completou dezoito anos, se perfumou toda e foi ear no parque.
lá encontrou um sargento, quinze anos mais velho que ela.
entre um sorvete e outro, começaram a namorar.
dois meses depois estavam noivos, já com casamento marcado.
o sujeito era feio como o diabo, vestia uma máscara de homem bruto e bravo, e sempre ia à casa da minha tia fardado, para impressioná-la.
divina nunca havia se apaixonado de verdade, tivera romances imaginários com galãs de novela, professores do ginásio e até com um padre jovem da paróquia do bairro.
mas nunca se derretera por alguém de carne e osso.
até que um dia, em casa, seus olhos límbicos se encontraram com o de márcio andré, um adolescente bonitão que estudava com meu irmão, eles faziam a oitava série.
na mesma tarde márcio e divina se atracaram, boca com boca, umbigo com umbigo, virilhas com virilhas, devorando-se como dois canibais famintos.
os encontros foram se sucedendo, mamãe desconfiou de súbita alegria da jovem e de suas constantes visitas.
até que divina, espremida, confessou a traição, e disse mais, iria à lua de mel já desvirginada.
houve choro e ranger de dentes.
mamãe chamou márcio para uma conversa, disse que a moça se casaria daqui a duas semanas e fê-lo desistir da felonia.
márcio e divina aram essas semanas transando e chorando, num delicioso ritual de despedida.
mamãe impediu os filhos de ir ao casamento.
nessa noite, márcio virou um molambo humano, chorava como um adulto.
meu irmão teve pena dele e dela.
e usou suas habilidades mais uma vez para fazer o bem.
roubou um carro, botou a molecada dentro e fomos à igreja.
o combinado seria que eu, um experiente coroinha, entrasse na igreja, acompanhasse a cerimônia e avisasse o momento em que o padre diria: “se alguém tem algum motivo para se opor a este casamento, que fale agora ou cale-se para sempre”.
aí márcio entraria e, a plenos pulmões, confessaria-se talarico, denunciaria a noiva como adúltera e anularia o casório.
todos estávamos de acordo que o plano era perfeito.
quando entrei na igreja, minha família tava saindo, o casamento havia sido concluído, os noivos receberam a chuva de arroz e se mandaram para um hotel, uma vez que iriam viajar pra lua de mel ainda naquela noite.
descobrimos o hotel e fomos pra lá, márcio insistiu que queria vê-la pela última vez.
satanás deu uma mãozinha.
quando estacionamos, uma cortina se abriu na janela à nossa frente, três andares acima de nossas cabeças.
era a diva, e ela estava divina.
márcio fez mímica pedindo pra que ela descesse, ela mimicou de volta perguntando se ele tava louco, ele disse que sim e perguntou onde estava o noivo, ainda na linguagem gestual divina disse que o papa-anjo tava no banho.
márcio se ajoelhou com um ramo de folhas na mão, como se a pedisse em casamento, ela se derreteu toda e quase escorreu pela janela.
fechou a cortina novamente e sumiu.
daqui a pouco ela apareceu na porta do hotel, de grinalda na cabeça, segurando a barra do vestido de noiva para não arrastar no chão.
entrou no carro e saímos em disparada.
muita alegria, muita algazarra.
ela ficou uma semana escondida no quarto de márcio andré, a polícia procurava o paradeiro dela.
o sumiço saiu no jornal.
meu pai ameaçou surra de cinto, de chicote, de galho de amora…
ninguém abriu o bico.
mamãe não se conteve, foi à casa de márcio e conversou com a mãe dele.
a velha tinha uma chave reserva, abriram a porta do quarto e lá estava divina, vestida com as roupas do namoradinho.
o marido a aceitou de volta, mudaram-se para outro estado e foram infelizes para sempre.
palavra da salvação.
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