• QUANDO A COMIDA CAUSA DOENÇAS

    Os 'vilões' da alimentação: a lógica por trás do avanço dos ultraprocessados

    Enquanto estudos alertam para risco à saúde, ultraprocessados são cada vez mais consumidos pela população; especialistas discutem cenário

    Os 'vilões' da alimentação: a lógica por trás do avanço dos ultraprocessados.Créditos: Marcelokato/Pixabay
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    Apesar de extremamente nocivos à saúde, os ultraprocessados se tornam cada vez mais presentes na alimentação dos brasileiros. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP), divulgado em 2023, mostrou que na última década o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5%. Hoje, 20% das calorias consumidas pelos brasileiros são provenientes de ultraprocessados.

    Diversos estudos divulgados a cada ano mostram como esse tipo de alimento afeta negativamente a saúde. Pesquisas já mostraram que eles estão relacionados a diversas doenças não transmissíveis, como diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão e obesidade. Os ultraprocessados também já foram atrelados ao desenvolvimento de cânceres e até de doenças mentais, como depressão e ansiedade. Um estudo da Fiocruz em parceria com as ONGs ACT Promoção da Saúde e Vital Strategies mostrou que o custo total relacionado ao consumo de alimentos ultraprocessados chega a R$ 10,4 bilhões no Sistema Única de Saúde (SUS). A questão que fica, então, é por que os ultraprocessados continuam sendo tão ofertados mesmo com evidências científicas mostrando o risco que eles representam?

    O que são os ultraprocessados

    Os alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas a partir do processamento de alimentos com o objetivo de alterar significativamente a composição e textura originais. Nesse processo, são adicionados ingredientes sintéticos como corantes, aromatizantes, conservantes e outros aditivos químicos. Eles também apresentam alto teor de açúcar, gordura e sal, enquanto são pobres em nutrientes essenciais como fibras, vitaminas e minerais, como explica a nutricionista e pesquisadora da USP Gabriela Cruz. 

    "Além disso, ultraprocessados possuem aditivos alimentares que realçam sabores, tornando-os hiper-palatáveis. É uma combinação explosiva: açúcar, gordura e sabores intensos tornam esses alimentos muito atrativos à nossa biologia humana, gerando aquela sensação de que é impossível parar de comer", explica a nutricionista. 

    No processo de comercialização, os ultraprocessados se tornam muito mais baratos - devido à forma como são produzidos: em larga escala por grandes empresas e utilização de ingredientes baratos - e, por isso, são uma opção mais ível em comparação a alimentos in natura. A pesquisadora em Sistemas Alimentares com foco em ultraprocessados Patrícia Mello afirma que essa lógica é resultado de um processo estrutural ligado ao sistema alimentar atual, que é baseado na produção em larga escala e de commodities.

    Os perigos dos ultraprocessados

    "Na ciência, estudos demonstram a relação entre o consumo de ultraprocessados e mais de 30 diferentes doenças e agravos à saúde, que vão desde obesidade e doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e câncer, até condições como asma e depressão", afirma Gabriela, citando uma recente pesquisa que reuniu 45 estudos, publicada na revista científica The BMJ em fevereiro, que mostrou que ultraprocessados consumidos no dia a dia são ligados a mais de 32 doenças.

    Além disso, outras pesquisas também já evidenciaram que o consumo de ultraprocessados eleva em 26% o risco de obesidade, em 23% o risco de sobrepeso e em 79% o risco de síndrome metabólica (condições que aumentam o risco de doença cardíaca, acidente vascular cerebral e diabetes). Além disso, aumenta em 102% a chance de colesterol alto em 102%, de 29% a 34% o desenvolvimento de doenças cardiovasculares em 29% a 34% e a mortalidade por todas as causas em 25%.

    Já um estudo publicado no periódico Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics, liderado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), também em fevereiro, mostrou que consumir alimentos ultraprocessados aumenta em até 58% o risco de depressão persistente.

    Desse modo, o cenário alimentar que se apresenta hoje evidencia que há uma inversão quando é possível a comida ser a responsável por causar doenças. 

    Se tão perigosos, por que ainda tão ofertados?

    A grande oferta de ultraprocessados, que hoje nos rodeiam não só em supermercados mas também em máquinas de comida pelas ruas e em estações de metrô, em escolas e até em farmácias, se deve justamente ao sistema alimentar citado pela pesquisadora Patrícia Mello, que é pautado na produção de commodities e em larga escala. Ela afirma que esse modo de produzir alimentos, a  partir de fatores econômicos e culturais, constituem os "sistemas alimentares das corporações".

    Essa forma de produção tem o interesse comercial como principal fator, o que impulsiona a produção e distribuição de alimentos ultraprocessados, que são mais fáceis de serem consumidos pela sociedade devido ao seu baixo custo - principalmente entre comunidades de baixa renda.

    "Ao invés de utilizar iogurte e morango para fazer um iogurte de morango, como nós faríamos em casa, a indústria usa corante vermelho, aromatizante de morango e uma quantidade mínima da fruta - e vende seu produto como iogurte sabor morango. Os rótulos estampam imagens de morangos frescos, embora o alimento contenha pouquíssima fruta de verdade. As características são dadas de forma artificial para parecer morango. Por isso, e por serem produzidos em larga escala, os ultraprocessados conseguem chegar ao mercado com preços muito competitivos", explica a nutricionista Gabriela Cruz. 

    Já Patrícia Mello chama atenção para o poder da forma de produção alimentar atual. "Quando a gente fala nesse crescimento do consumo, acho que ele deve ser entendido mais como um um resultado direto de como a gente produz, de como os nossos sistemas alimentares estão estruturados em torno, principalmente, de uma lógica de lucro dessas grandes corporações. Muitas delas são transnacionais, então é uma coisa mundial, que elas não olham para a necessidade da saúde coletiva".

    Ela acrescenta que, devido a esse mercado de corporações muito poderosas, quando se fala em regulação, se debate disputas políticas, econômicas e até ideológicas enraizadas no sistema do capital. "Acho que o que entra mais em jogo não é só uma certa omissão do Estado, mas é um embate direto entre o interesse de saúde pública e os interesses comerciais dessas grandes corporações de alimentos", diz. "E aí quando a gente fala dessas grandes corporações a gente vai falar desde a produção até a distribuição desses alimentos, porque muitas empresas são uma só, então elas acabam exercendo uma influência muito forte em cima das políticas públicas", complementa a pesquisadora.

    Essas corporações, como ressalta Patrícia, trabalham de uma maneira muito estratégica na formação de políticas públicas. "Essas indústrias acabam influenciando as decisões que deveriam ser orientadas por ciência, por saúde, pelo interesse público", alerta. Um exemplo foi a discussão durante a Reforma Tributária, em que organizações em prol da saúde pressionaram para a inclusão dos ultraprocessados no Imposto Seletivo, para que pagassem mais impostos. O lobby do agro e das grandes indústrias de alimentos, porém, conseguiu formar uma aliança que influenciou a decisão de deixar esses alimentos de fora do imposto. 

    "A gente vai esbarrar em diversas barreiras políticas, ideológicas e econômicas de lucro. Elas vão ser sustentadas por uma estrutura institucional que vai favorecer sempre o lucro em detrimento da saúde pública", afirma Patrícia. 

    A publicidade em torno dos ultraprocessados também é um dos principais fatores que colaboram para um maior consumo entre a população. "A gente tem uma publicidade muito intensa que afeta muito o emocional, que vai reforçar a ideia de praticidade, de modernidade, de desejo de consumo. E a gente também fala de uma alta disponibilidade" comenta Patrícia. 

    Gabriela destaca que a publicidade é um "fator essencial." Temos propagandas de ultraprocessados em todos os locais. Muito além da propaganda tradicional no intervalo da TV, hoje as redes sociais são muito importantes nesse âmbito, com artistas famosos e influencers fazendo 'publi' de diversos ultraprocessados. O patrocínio também é uma forma poderosa de propaganda, como mostra o exemplo da Copa do Mundo, patrocinada pela maior rede de fast food do mundo. De maneira sutil, essa associação vincula a marca ao esporte — símbolo de saúde e bem-estar —, criando uma imagem positiva que contrasta com os efeitos prejudiciais dos seus produtos", afirma. 

    Além da publicidade, as próprias embalagens dos alimentos ultraprocessados são feitos para chamar atenção do público, principalmente de crianças e adolescentes. "As embalagens são cuidadosamente elaboradas para serem atrativas, chamativas e sedutoras. Com frequência, destacam alegações de benefícios à saúde, como adição de vitaminas, redução de açúcar ou teor de gordura. O que não é informado é o teor de adoçantes artificiais usado para redução desse açúcar, os emulsificantes que entram quando o percentual de gordura é reduzido", alerta Gabriela. 

    "Sem falar na publicidade direcionada às crianças: super-heróis, princesas e personagens de desenhos animados estampam embalagens coloridas que estimulam o imaginário infantil e incentivam o consumo de ultraprocessados. E todo esse investimento traz resultado: crianças e adolescentes são os maiores consumidores de alimentos ultraprocessados do mundo", acrescenta a nutricionista. 

    Ultraprocessados: alimentos ou produtos?

    Se os ultraprocessados são formulações industriais feitas a partir de fragmentos de alimentos que recebem uma série de aditivos químicos e ingredientes sintéticos, e são produzidos a partir de um interesse comercial, eles podem ser considerados alimentos ou somente produtos"M22.3,11.3c-0.2-0.7-0.7-1.2-1.3-1.3C19.8,9.7,15,9.7,15,9.7s-4.8,0-5.9,0.3c-0.7,0.2-1.2,0.7-1.3,1.3 C7.4,12.5,7.4,15,7.4,15s0,2.5,0.3,3.7c0.2,0.7,0.7,1.2,1.3,1.3c1.2,0.3,5.9,0.3,5.9,0.3s4.8,0,5.9-0.3c0.7-0.2,1.2-0.7,1.3-1.3 c0.3-1.2,0.3-3.7,0.3-3.7S22.6,12.5,22.3,11.3z M13.5,17.3v-4.6l3.9,2.3L13.5,17.3z"/>

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