RACISMO

Polêmica TikTok e sinofobia: como a mídia brasileira desqualifica a China

Durante visita à China, Lula desmente boato sobre “climão” de Xi Jinping com Janja; mídia brasileira reforça narrativas racistas ao ignorar papel chinês na regulação digital e na governança global

Escrito en Opinião el
Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
Polêmica TikTok e sinofobia: como a mídia brasileira desqualifica a China
Polêmica TikTok e sinofobia: como a mídia brasileira desqualifica a China. Durante visita à China, Lula desmente boato sobre “climão” de Xi Jinping com Janja; mídia brasileira reforça narrativas racistas ao ignorar papel chinês na regulação digital e na governança global. Dreamstine

Durante a visita oficial à China nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva celebrou 20 acordos bilaterais e 17 memorandos de entendimento entre Brasil e China. No entanto, a mídia comercial brasileira concentrou-se em um único tema: a especulação sobre um suposto “climão” entre a primeira-dama Janja e o presidente chinês Xi Jinping, motivado por um comentário sobre o TikTok.

Em entrevista coletiva em Pequim, na terça-feira (13), Lula desmentiu enfaticamente o boato divulgado em artigo de Andréia Sadi e Valdo Cruz no site G1, que retratava a postura de Janja como “desrespeitosa” e “fora de protocolo”. Lula afirmou que a pergunta sobre o TikTok partiu dele e que a reunião era confidencial.

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Na quarta-feira (14), o boato virou pauta política e chegou ao Congresso Nacional, onde parlamentares da oposição, como Mendonça Filho (União-PE), classificaram a atitude como afronta à soberania nacional e anunciaram a intenção de convocar o chanceler Mauro Vieira para esclarecimentos.

Impacto no debate sobre regulação das redes sociais

O episódio complicou ainda mais a discussão sobre a regulação das redes sociais no Brasil, especialmente em relação ao PL das Fake News (PL 2630/2020), que enfrenta resistência política e está paralisado desde 2023. Para esses grupos, trata-se de mais uma justificativa para manter a internet como “terra sem lei”.

A cobertura midiática e o debate público refletem profundo desconhecimento sobre o sistema político chinês, permeado por eurocentrismo e sinofobia. Nos programas televisivos e redes sociais, canais como a GloboNews repetem discursos que desqualificam a China por ser uma “ditadura”, ignorando a complexidade do tema.

Soberania, autodeterminação e respeito às nações

Nossa Constituição Federal, em seu Artigo 1º, estabelece a soberania como fundamento da República Federativa do Brasil, e o Artigo 4º destaca princípios como o respeito à autodeterminação dos povos, à independência nacional, à defesa da paz, à não-intervenção e à solução pacífica dos conflitos — bases que asseguram o respeito do Brasil à soberania dos Estados e ao direito dos povos de decidirem seu destino político sem interferências externas.

No plano internacional, a Carta da ONU, assinada em 1945, reafirma esses valores, baseando-se na igualdade soberana de seus membros e proibindo o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado. A Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU, de 1960, reconhece o direito dos povos à autodeterminação para que possam escolher livremente seu sistema político e seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

Sinofobia e racismo estrutural

A desqualificação sistemática da China na imprensa comercial brasileira, sobretudo no que se refere à regulação das redes sociais, pode ser entendida como manifestação de sinofobia e racismo estrutural.

A China, potência global não ocidental, é reduzida a estereótipos negativos, associada simplesmente ao autoritarismo e desconsiderada como protagonista legítima nas discussões globais sobre tecnologia e governança digital.

Essa narrativa eurocêntrica ignora as contribuições reais da China, que incluem:

  • Modelo de regulação centrado na soberania digital: defesa do direito soberano de cada país regular a internet conforme seus valores e interesses nacionais, contrapondo-se à hegemonia das grandes plataformas ocidentais.
     
  • Legislação robusta sobre segurança e controle de conteúdo: Lei de Segurança Cibernética de 2017 e outras normas detalhadas para controle de fake news, discurso de ódio e proteção de dados pessoais.
     
  • Combate à desinformação e fake news: uso de inteligência artificial e parcerias público-privadas para monitoramento e combate a informações falsas.
     
  • Promoção da economia digital inclusiva e desenvolvimento tecnológico próprio: investimentos em algoritmos e plataformas locais para uma internet “saudável” e regulada.
     
  • Liderança em fóruns multilaterais e iniciativas alternativas: participação ativa na ONU e no Fórum Global para a Governança da Internet (IGF), promovendo governança multipolar e representativa do Sul Global.

Hipocrisia da narrativa ocidental sobre o TikTok

A polêmica do TikTok nos Estados Unidos revela a hipocrisia da narrativa ocidental, que usa pretextos de segurança nacional para banir a plataforma chinesa, enquanto ignora o sistema massivo de vigilância e coleta de dados praticado por empresas e agências estadunidenses.

No Brasil, a imprensa comercial replica essa narrativa sem crítica, alimentando uma campanha sinofóbica que invisibiliza problemas similares no Ocidente. Isso reforça estereótipos raciais e culturais que pintam a China como ameaça autoritária e apresentam os países ocidentais como defensores da liberdade, ocultando violações igualmente graves.

Democracia popular chinesa: complexidade ignorada

Simplificar a China como “ditadura” desconsidera a complexa realidade política do país. O sistema chinês é definido oficialmente como uma "Democracia Popular de Processo Integral", que difere fundamentalmente das democracias liberais ocidentais.

Segundo artigo do Qiushi, jornal oficial do Comitê Central do PCCh, escrito por Lin Shangli, presidente da Universidade Renmin, o Partido Comunista da China é a estrutura do Estado, guardião do mandato popular.

Diferentemente das democracias liberais, baseadas em eleições periódicas, a democracia chinesa valoriza a participação contínua da população em todos os níveis, por meio de consultas constantes e mecanismos de supervisão, como a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CPC) e comitês locais.

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A legitimidade democrática na China é medida pelos resultados: a capacidade do governo de promover desenvolvimento sustentável e o bem-estar da população, diretamente ligada à estabilidade econômica e prosperidade social.

Um dos feitos históricos alcançados pela China foi o de tirar cerca de 800 milhões de pessoas da pobreza extrema nos últimos 40 anos, representando mais de 75% da redução global da pobreza no período. Esse marco foi oficialmente declarado em 25 de fevereiro de 2021, quando o governo chinês anunciou a erradicação da pobreza absoluta em todo o país.

O processo de redução da pobreza foi acelerado a partir de 2012, com a implementação de políticas direcionadas que resultaram na retirada de mais de 10 milhões de pessoas da pobreza por ano, uma média de uma pessoa a cada três segundos. Além disso, 832 condados e 128 mil vilarejos foram removidos da lista de áreas empobrecidas.

Esse sucesso é atribuído a uma combinação de crescimento econômico sustentado, investimentos em infraestrutura, programas de transferência de renda e políticas de desenvolvimento rural. A erradicação da pobreza extrema na China é considerada uma das maiores conquistas no combate à miséria na história recente.

Esse modelo desafia a visão ocidental ao priorizar diálogo, consulta e ação prática, enfatizando meritocracia e combate rigoroso à corrupção. A "democracia popular" chinesa valoriza a harmonia social e o bem coletivo, contrastando com o individualismo ocidental, e considera o povo como a força motriz da história, com ampla participação na governança.

Essa concepção convida a um debate mais plural e menos eurocêntrico sobre democracia, desafiando a ideia de que o modelo ocidental seria o único legítimo.

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